Último aniversário - Dra. Uschi Drolc, por Nicolas Rouquette
Hoje, dia 3 de janeiro de 2007, minha amiga de há 26 anos faz 47 em um hospital, e morre, finalmente vencida por um câncer de mama que teve em 1999, voltou acho que há dois anos, já em uma metástase para os pulmões e vias respiratórias. Os médicos haviam guardado o tumor para comparar se voltasse o ca. Era o mesmo.
É difícil para muitos compreender o que é perder uma amiga que esteve presente em momentos tão cruciais da vida de outrem. Uschi caiu na minha vida de repente, de um telefonema da Rodoviária, em uma noite chuvosa, através de um conhecido que havia feito a viagem no "trem da morte' para os Andes. Ela veio ocupar um lugar essencial de apoio depois que chutei meu ex- do apê.
Morou comigo alguns meses, sempre de poucas palavras, porém espirituosas.
Todo mundo achava a Uschi esquisita porque usava um vestido longo de seda negro com estamparia, que foi de sua avó. Porque carioca é jeca, vocês me desculpem e fui jeca também. Um amigo lhe deu uma linda maçã para comer antes da travessia na Cantareira. Ela poliu a maçã e a guardou no bolso do tal vestido. Esquisito, né? Não, mentalidade cordeiro: jeca (Monteiro Lobato.)
Saíamos para um bar chamado Prudente Demais, quase na diagonal do Veloso(Bar Garota de Ipanema), um bar metido a besta, onde a música era legal, The Police, Ghost in the Machine, essas novidades do verão de 81-82. Nosso grupo era internacional. Um Libelu francês, uma negra do Harlem, professora, uma Libelu linda, sua irmã, idem, Uschi e eu. Não sei como havia tanto assunto mas havia papo até a madrugada, com o compromisso de aulas no dia seguinte.
Íamos ao Emoções Baratas, que durou só este verão, um lugar para dançar e beber. Conhecia um dos garçons, o que facilitava a entrada. Uschi dançava "esquisito" -- no melhor estilo punk de fingir dar porrada, como vejo nos filmes hoje. No Rio era "esquisito."
Aprendeu português praticamente só. Lia minha coleção do Pato Donald, Tio Patinhas, os Metralhas e sobrinhos. Gostava de ver o mar. A Bavária não tem mar.
Um dia trouxe um abacaxi da quitanda. Ai, cacete! Um abacaxi, quem vai descascar? Ela descascou o abacaxi assim como descascou os meus abacaxis metafóricos. Fui muito feliz com a pessoa que me ensinou que "Uma mulher precisa de homem como um peixe precisa de bicicleta." Antes de voltar para a Alemanha para seguir seus estudos me deixou 80 dólares, uma fortuna para mim. Dois meses de aluguel.
Foi para o Kenia estudar as línguas de lá. Casou-se com um Masai mas não deu muito certo trazer o Masai para a Bavaria. Teve uma filha e veio visitar no nosso apê em frente da escola,já em Santa Monica. A filha era levada da breca e bem alta para sua idade, uns dois anos, acho. Uschi permaneceu enigmática e impassível face aos desastres de J. Eu estava grávida. Fizemos turismo de pobre, tudo aqui perto. Venice Beach, Marina del Rey, e um luxo: o restaurante grego em San Pedro. Era verão e meu aniversário.
Uschi se tornou doutora em línguas africanas orientais e depois em ocidentais. Suas pesquisas de campo atrasaram suas publicações. Teve um filho francês e aprendeu francês fluente. Quanto ao marido disse: -- Às vezes o peixe precisa da bicicleta.
Minha amiga me ensinou uma frase intraduzível pois Sehnsucht não dá pra traduzir. "Ich habe Sehnsucht nach die." Ela me ensinou a ser estoica sem perder o sentimentalismo. Em sua casa, em 1999, tirou um álbum de fotos que lhe havia dado. Nem me lembrava disso. Mostrou as fotos, da minha NIkon, com um orgulho de quem diz: -- Vê? Não me esqueci. Estava careca, assustou o Gabi. Fomos a Munich, fomos à sepultura do Wagner e do seu cachorro em Bayreuth, e a dois castelos do Ludwig. Quando vi o castelo da Cinderela comentei: -- Ih, é o castelo da Cinderela! -- Uschi me corrigiu: -- O castelo da Cinderela é que é o Neuschwanstein.
Foi uma linda noite, lua cheia, jantamos no melhor restaurante do complexo da casa de ópera. O menu trazia a palavra mouse no lugar de mousse. Guardei-o. A ópera, sobre Ludwig, foi estupenda, melhor que Broadway, com um palco incrível. No final Ludwig afunda com seu cavalo na lagoa à beira do castelo. É bárbaro.
São pequenos momentos que fazem a memória da gente refletir sobre a capacidade do ser humano para ser bom ou mau, compartir ou reter-se. Sabia que Uschi estava por um fio. Hoje é seu aniversário de 47 anos. Uma incelênça. Dra. Ursula Drolc, que resolveu ser linguista por causa de mim, imaginem, eu, que nunca fui nada academicamente exceto curiosa indisciplinada. Uschi, possuída pelo Wanderlu
st dos alemães, vai descobrir muitas pradarias e línguas celestiais.
Uschi em junho de 2003, no dia seguinte ao show da alemã oriental Nina Hagen. Nosso apê em frente à George Washington Bridge, imortalizada por Simon and Garfunkel em "Feelin' Groovy." Celebremos o fim do seu penar.
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É tão difícil perder alguém querido... ao mesmo tempo é tão bom ver o quanto a gente cresceu por este tempo que compartilhamos juntos.
Feliz aniversário para a sua amiga. As sementes que ela plantou continuaram a ser comemoradas.
Um grande abraço
Posted by: _Maga | 04-01-2008 at 19:48
Nossa!!!... que lindo o que sente...
"... o amor ás vezes é bom, mas a amizade sempre é..."
Um abraço, Ro
Posted by: Ro | 06-01-2008 at 10:55
Toda perda é triste, mas nos fortalece para enfrentar as adversidades da vida. Sua amiga teve uma bela trajetória de vida, e merece a linda homenagem :)
Posted by: Gabriela | 07-01-2008 at 16:55
Sinto por sua perda. O que pode uma estranha dizer a outra pessoa sobre perdas? Palavras nunca bastam, não é mesmo? São insuficientes para traduzir a dor, a saudade, a tristeza e até mesmo a alegria. São apenas palavras. E ainda assim, ainda sendo palavras, são eternas. E assim sua amiga ficará eternizada em sua memória: em palavras, frases, ditos, letras.
Abraços!
Posted by: Kriz | 07-01-2008 at 17:39
Era uma tarde paulistana em pleno Rio de Janeiro. Garoa fina e céu cinzento e você pediu que eu fizesse companhia para sua amiga alemã que arrastava um pouco de inglês e eu que nem pouco arrastava fiquei olhando para a figura com um vestido do tempo da 2ª guerra sem saber por onde começar uma conversa. há controvérsias em nossas memórias. Eu acho que dei a ela uma tangerina ou moricote como chamam por aqui. Saudade daquele tempo. Agora ela deve estar para além das estrelas. Um dia encontraremos com ela.
Posted by: Marcos Jorge | 16-01-2008 at 17:54