Descansa debaixo dos Sete Coqueiros, por Nicolas Rouquette

Tirinha 801 Malvados de Andre Dahmer

Geralmente, umas cinco, cinco e meia da manhã, antes de tomar café ou blogar, abro meu e-mail. São bobagens, às vezes qualquer lance do banco, um comment, de vez em quando um mail de amigos longe de Santa Monica.

Hoje de manhã foi uma porretada. Um primo distante, Marcos Carmelo, faleceu. Sua ex- me escreveu um mail curto, à maneira dela, mulher de poucas palavras; as economiza para suas sentenças na justiça. Morreu o Marcos sozinho no seu apê em SP. Seu corpo foi descoberto dias após sua morte. Sua causa mortis, o álcool, a droga que mais detesto pelo mal que faz a pessoas e suas famílias. A droga legal, como o cigarro, que mata a alma antes do corpo.

Lembro-me do Marcos aos 26 anos. Gerente-geral de uma múlti em SP, bem apessoado, quase falastrão, insinuante, sedutor. Alto para um alagoano, tinha mil estórias que couberam durante as refeições de minha visita. Seus papos com Vladimir Palmeira, outro alagoano na política estudantil, as aventuras do pessoal da época de 68, da UNB, do fracasso da UNE, todas as siglas sobre as quais havia lido quando guria, da marcha dos 100.000, que fascínio ver alguém que esteve lá em carne e osso.

Se era imperioso seu tom, não me afetou. Seu dom da palavra era hipnótico. O que me seduz em geral é o poder intelectual de um homem. Notei que bebia às refeições, mas quem não bebe no Brasil ?

Separaram-se meu primo distante e minha amiga. Fiquei muito ligada no Marquinhos, seu filho mais novo, aquele que se faz quando o casamento está indo para as picas. Vi seus primeiros passos e foi --Fogo! -- sua primeira palavra, para uma certa reação irada do pai, Flamenguista. Cresceu Marquinhos muito parecido com o pai que mal conheceu. Tem o mesmo charme e sedução, o mesmo andar, é mais bonito, bem mais bonito. É doce, de uma doçura que a cana fornece assim como fornece o álcool.

Não preciso contar pra vocês o que é a vida de um viciado, seja em álcool, seja em heroína. O gerente-geral morreu na penúria, sem família, sem ninguém. Morreu só porque já vivia só. André Dahmer desenhou bem esta situação no malvados tira número 800.

Foi difícil o dia de hoje. Nem o havia visto nem sei mais há quantas décadas. Falei com meu Marquinhos agora à noite. Não sei por quê se chora quando a vida chega ao fim se era uma vida com tanta dor e que a tantos fez sofrer, mesmo que involuntariamente. Liguei para Marquinhos para consolar e acabei sendo a consolada. Marcos Carmelo será transladado para as Alagoas daqui a três anos. As notícias dos preparativos finais de certa forma me aquietaram. Passei o endereço do meu blog. Jurei pro Marquinhos que ele continua sendo o meu queridinho do meu coração, segundo só para o Gabi.  Gosto do seu irmão, que já é Ph.D. mas são amores diferentes.

Que Marcos esteja tomando uma água de côco embaixo dos Sete Coqueiros da Pajuçara, em Maceió, levando um lero marxista ou flamenguista com seu anjo da guarda, um displicente anjo da guarda, mas a vida é assim.

Publicado anteriormente no antigo Universo Anárquico em 8 de julho de 2006.

Obrigada a André Dahmer, autor de Malvados, pela autorização de uso das tiras e sensibilidade em relação ao alcoolismo.

Tirinha número 800 de Malvados de Andre Dahmer

 

Comments

[Sergio]

Olá, Tina!

Sinto pela perda de seu primo. Essas drogas são mais aceitas que as familias, e pouco se faz.

Tenha um feliz natal!!

Maceió já tá fervendo!!

[_Maga]

Por mais sofrida que seja a vida, a dor da morte é inevitável para quem fica. Por mais esperada que seja, ela sempre chega de surpresa.

Acho que no fim, a gente sofre mais ainda por aqueles que viveram sem viver. Por aqueles que passaram pela vida anestesiando seus sentidos, escondendo-se do mundo.

Morre mal, quem vive mal.

Uma tristeza, enfim.

Um abraço, Tina