Uma gafieira moderna - Disquelite, por Nicolas Rouquette
Era uma gafieira moderna. Mantinha as cadeiras e mesas mínimas do tempo do onça só que refeitas em uma carpintaria na Bento Lisboa, no Catete. Era uma gafieira iluminada, quase discoteca do samba. Não era escura como a Elite, no Centrão velho, nem arriscava ter barata prancha rondando em cantos de parede. Os garçons seguiam à risca o uniforme branco com gravatinha borboleta e caras alternativamente de esfomeados a um passo da tuberculose ou caras gordas renascentistas. A gafieira era uma gafieira autêntica nouveau(sic) para o pessoal endinheirado mas não tanto solto no samba.
Sua localização era ideal. No Arco do Teles, ao lado da Praça XV das barcas para Niterói, o Arco do Teles renovado, cheio de vida noturna para trintões e trintonas. E foi assim que se esbarraram. Ela tinha um riso fácil, Berenice, dentes tecnologicamente perfeitos. Não era aquele risinho nervoso de mulher a perigo, aquele qui-qui-qui irritante de jovens com periquitas a perigo. Não, Berenice tinha um gargalhar de mulherão que sabe seu valor onde interessa. Ele, Alfonso, de Icaraí, também era bem apessoado, uma certa calvície precoce que lhe dava um ar de homem confiável talvez de posses acima das suas. E bigodes antigos, respeitabilidade. Trancaram-se num samba um pouco aquém dos limites de decência no piso de uma gafieira. Disquelite era uma gafieira moderna. Valia tudo menos exposição de genitália. Isso só nos bons tempos da Sótão na Galeria Alaska na Copacabana pré-praga.
Alfonso e Berenice rodavam felizes, ela às gargalhadas enquanto ele lhe dava uns amassos carentes de quem entende do riscado. Foram finamente à mesinha que os aguardava. Ela pediu xarope de groselha com bastante gelo. Ele absteve-se do álcool; sua idade ditava prudência. Pediu uma tônica. Por motivos ideológicos não tomava coca-cola. Por motivos cronométricos tinha que sair da farra antes da Cantareira tocar a meia-noite. Será que Bê toparia cruzar para Niterói com ele? Podiam ir para sua garçonière em Icaraí e inventar desculpas para ambos consortes. É, eram casados, a gafieira era momento de ilusão. Essa Bê era gostosa demais para largar assim sem mais.
Sentimento mútuo, Bê também está molhadinha de suor. Saem da Disquelite para as barcas, das barcas em táxi para Icaraí. Dentro do apartamento de encontros do Alfonso, rachado com outros cinco engenheiros, a decoração era acintosamente de prostíbulo de luxo. Veludo vermelho, brocados, espelhos com molduras barrocas douradas. O cheiro, entretanto, era de consultório médico. Nada como dinheiro para apagar pecados na Terra. Depois a gente vê.
Já estavam no depois, saciados, escutando musiquinha do Roberto Carlos, que melhor não há nessas horas, quando entraram em papo furado sobre a vida real.
--Como se chama seu marido mesmo?
-- Alcebíades. Por quê? É engenheiro. E você com isso. -- Estava um pouco irritada com a invasão do real no quase virtual.
Alfonso quase gelou. Manteve a pose. Como quem não quer nada, mandou mais uma pergunta:
-- E teu Alcebíades trabalha onde, Bê? (Berenice era longo demais para uma zinha de uma noite só mesmo que valesse dez, potranca fogosa.)
--Ah, ele é engenheiro chefe de siderurgia. É chefão e chato. Por quê? Vem cá que o Rei está cantando "Muito Romântico."
Alfonso gelou. Alcebíades, chefão em siderurgia e chato só podia ser seu chefe. Um incompetente chato padedéu. Voltou à conversa.
-- E você gosta deste teu marido, Alcebíades? --Uma ponta de ciúmes já o corroía.
-- Ah, se ele não desse tanto ponto para a Severina Regina até que ia. Acho que são. Amantes. Danem-se. Vem cá, gostosinho. O rei canta para nós.
Não preciso ir além nessa estoriazinha clichê. Severina Regina era nada mais nada menos que o nome da esposa do Alfonso. Coincidência de Maupassant.
Nem dez pílulas azuis o fariam obedecer aos pedidos do Rei no cassete da Bê. Ria e chorava sozinho. Bê, sem entender nada foi ao banheiro se lavar. Voltou vestida. Será que tinha entendido algo mais? Alfonso nunca chegou a saber.
Encontraram-se os casais em coquetel da siderurgia, uma ocasião rara para Alfonso em sua recente promoção. Olhares furtivos e trocas de torpedos de papel prometiam um algo mais. Quem sabe outra noite mágica no Disquelite?
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Mundo pequeno esse dos engenheiros e das gafieiras.
Posted by: Marcos Jorge | 08-11-2007 at 08:32
Ora, Marcos:
Mundo pequeno esse de nomes inusitados, não é mesmo?
Posted by: tina oiticica harris | 08-11-2007 at 08:37
Haha, mundo pequeno mesmo... :P
Não era mais fácil eles assumirem os respectivos amantes e trocarem logo de casal? (mas aí com o risco de o romance perder toda a graça :P).
Posted by: Gabriela | 10-11-2007 at 09:33
E se as intenções dos engenheiros, chefe e subalterno, for um menage a quatre?
Posted by: tina oiticica harris | 10-11-2007 at 10:32