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26-11-2007

Sábado no Largo do Machado, por Nicolas Rouquette


Zeca acordou com dor de cabeça e gosto de guarda-chuva na boca. Não reconheceu o apê onde estava. Sentiu que estava nu, apalpou o que pensou poder ser o babydoll da Jacinta (símbolo de recato e decência) e deu com o tato em uma bunda redonda, africana, empinada, e -- êpa! com leve penugem. A ligeira presença de pelos dizia-lhe que esta não era de mulher. De fato, ao seu lado, enroscadinho estava um negro luzidio, um Adônis de ébano, sonhando ainda com as delícias...(Quais? pensou José?)
Sua vista devia estar embaçada. Apalpou o colchão para o outro lado e lá estava uma ponta da Jacinta, nua, toda nua! Podia adivinhar a nudez pecaminosa.

Zeca e Jacinta se tinham prometido castidade até o casamento, quando voltassem a Marechal Deodoro, Alagoas. Eram fanáticos religiosos, desses que acham que o Apocalipse está na esquina e interpretam como podem a Bíblia Sagrada. Pobres os dois, ouviam
nos seus radinhos de pilha os pastores pregando o fim do mundo e a necessidade de pureza . Contribuiam o que podiam para a salvação própria e a do mundo  prestes a chegar ao fim. Zeca trabalhava na obra do hotel de luxo na Rua General Glicério. Jacinta era babá de um menino hiperativo, hiper-abusado e hiper-assanhado na Marquesa de Santos.

Todos os sábados iam ao Largo do Machado, antigo reduto do Café Lamas de velhos carnavais, do tempo em que Laranjeiras era bairro nobre. Já fazia tempo que Laranjeiras era quase uma Zona Norte quase perto do mar. A favela de Dona Marta dava volta de Botafogo no seu cume e descia para as ruas mais nobres do ex-bairro nobre. A presença de negros, índice de pobreza no Brasil, exceto na Bahia, era comum diariamente, não só em dias de feira.

No sábado de folga, iam os doisa ao Largo do Machado, para fazer planos da volta ao nordeste, do casório, iam ver as vistas, as flores, espraiar as idéias.

Mas quem poderia ser aquele homem negro em um colchão jogado no chão de um apê onde mal entrava a luz?  Zeca começou a orar, pois evangélicos não rezam, oram preces. Sua língua pastosa brecava as palavras; seus olhos evitavam cobiçar o corpo nu da Jacinta. Levantou-se lentamente. Não queria que Jacinta acordasse para esse tipo de espetáculo: dois homens nus. Tentou orar, foi ao banheiro, essa foi fácil, o apê era um J.K. -- Janela e kitchinete. De volta, viu que havia uma comigo-ninguém–pode em um canto da cama e espadas de São Jorge em outro. Não se conteve com as provas cabais de macumbeiro no recinto, soltou um grito que lhe saiu fininho(era a língua espessa):

-- qwsjqojewjeo ... São Jorge!  qoijensdowdiefoi... comigo ninguém pode!

Espreguiçou-se e sentou-se no colchão o próprio, o Seu Jorge, da feira de sexta na Praça São Salvador. Vendia peixe. Dizia que gostava do cheirinho. Alto e esguio, bocejou e falou em sua voz de falsete:

-- Contigo  ninguém pode mesmo. Arromba. Qualquer um. Eu que o diga. Mas me vinguei. -- Mostrou seu sorriso perfeito ao Zeca, pasmado com o horror que imaginava ter-lhe acontecido.

O Jorge, que era macumbeiro, cachaceiro, mas gente boa, teve peninha do Zeca. Levantou-se, passou-lhe a mão direita na terra de ninguém e murmurou-lhe no ouvido: --Não foi bom?

Zeca pulou para trás. Queria dizer que havia sido horrível. Não se lembrava de nada. Aquela mão cujos dedos longos o tocavam deu-lhe arrepios. Não eram de todo desagradáveis. Tremeu. Quis pular pela janela. Estavam no térreo. Fez de conta que era católico, com o sinal da cruz berrou a plenos pulmões:

-- Arreda Satanás! Arreda, capeta! -- Tinha que admitir que o Satanás era bem apanhado, vistoso, ai, Senhor! E a Jacinta, símbolo de recato e decência?

Esta era muito da safadinha; se fingia de morta ao mundo exterior. Ser sonsa faz parte de ser virgem quando não se é a Virgem Maria. Sentia seu corpo por baixo dos lencóis e roncava de leve. Passava na cabeça  as delícias da noite na casa do Jorge,
em câmara lenta.

Quem comeu quem não interessa. O que interessa é a mudança de comportamento no Zeca, cujo nome verdadeiro era Ezequiel, e na Jacinta. Mudaram de estação de rádio no trabalho, para alívio dos companheiros de obra e da patroa. Jacinta tingiu o cabelo de vermelho escuro e o frisou também. Passava agora por mulata e trocou seu nome para Rosinha. Zeca trocou seu nome oficialmente para Lúcio. Sentiu-se possuído pelo demo e não teve jeito. Acabou fazendo residência no sanatório de Jacarepaguá e dizem que de lá abriu um blog," A Noite com o Capeta", em que diaramente conta o mesmo post. É sucesso publicitário. Sociológos e antropólogos antenados discutem a nova tendência bloguística criada por Lúcio, como se um montão de blogs não fossem uma repetição disfarçada. Enquanto escreve, Lúcio baba no uniforme. De dia ajuda nas eternas obras da instituição, aberta em 1923.

Rosinha aproveitou uma amansada na rivalidade das tribos étnicas brasieliras e gravou um baioque. Um compositor legendário gravou-o também. E o Jorge? Toca atabaque para Rosinha ou toca o que rolar. Vocês não me acreditam? Aqui está a prova. Clique, por favor!

(História inspirada vagamente em "Young Goodman Brown" de Nathaniel Hawthorne - leia coladinho(a) àquela pessoa querida e anglófona.

alagoana.jpg


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Comments

Marcos Jorge

Eu diria que é do cacête. Velhinha e safadinha. Eh eh!

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