Vô conta uma estória?, por Nicolas Rouquette
Entra no escritório do Dr. Silva Santos o guri. Ofegante, arranhado de uma pelada terminada em OXO, nem cansado nem contente. Carinha de enfado, vira-se para o avô e pede:
--Vô, conta uma estória?
O doutor franze o sobrolho. Pergunta para seu neto cadê a televisão, a babá eletrônica. O garoto dá com os ombros:
--Tá passando filme chato, vô. Já vi. Só tem morte morrida; não tem nenhuma morte matada. Não tem graça.
O doutor coça a cabeça. Grande verdade. Morte morrida não tem graça, nem a de um inimigo. Estória, estória, a inspiração sumiu com a babá eletrônica. Pergunta:
--Já te contei sobre o boi tatá? Espera torcendo os dedos, tomara que esta sirva.
--Ih, vô. Boi tatá, fogo-fátuo, mula-sem-cabeça, saci, caipora, tudo isso o vô já me contou. Conta uma estória com ação. E com amor. Traição. Estória de gente grande, vai, vô.
--Tá bom, meu filho. Mas não vale interromper. se falar quando eu falar não conto mais.
"No começo do século havia um senhor que tinha mágoa de ser pobre. Queria ser rico a todo custo. Tinha um amigo que era dono de terras em um lote em São Paulo. Era a Fazenda do Boqueirão. Chamava-se assim por causa de um lago aparentemente tranquilo. Só que o lago tinha um torvelinho inesperado que puxava as pessoas para baixo e muitos morreram assim, no Boqueirão. O dono mandou cercar o lago. Vivia feliz com sua esposa e filho. O nome do filho era Mário. Viviam bem até o dia da quebra da bolsa de São Paulo. Vou explicar. O preço do café, que era de onde vinha a riqueza do pai do Mário foi pra baixo, tão pra baixo que sua fazenda não valia mais nada. A bolsa troca papéis que correspondem a valores do café, açúcar, laranjas, prata, ouro, assim por diante.
O pai de Mário, desesperado, pediu ajuda ao seu amigo. Seu amigo estava enriquecendo. Só que o Paiva não era amigo de ninguém. Era tudo fingimento. Deu um tapinha nas costas do pai de Mário, fez-se desconsolado ao saber que a mãe de Mário estava grávida. Sonso, prometeu pensar no caso. Ele era a última instância, o último recurso. O pai de Mário se desesperou. Foi para o lago, fez uma prece maldita, pois assim é a prece de um suicida, e jogou -se no lago para nunca mais. Escutou o patrão o Pai João. Não conseguiu salvá-lo e fez-se de mudinho daquele dia em diante. O Paiva tornou-se o dono da fazenda, a mãe de Mário uma serviçal. Seu bebê foi natimorto. Ela mesma definhou e morreu.
Mário era uma criança revoltada que cresceu para tornar-se um jovem impossível. Gostava de desafiar o lago. Tinha descoberto as maneiras do torvelinho e dominado a morte várias vezes. Era um jovem solitário. Sabia que a filha do Paiva tinha uma quedinha por ele. Fazia pouco de Alice, chamava-a e corria, ele fazia muxoxos, era um romance velado de morde e sopra. Um dia ele a desafiou; disse que ela era banana, que tinha sangue de barata nas veias. Alice, que tinha de corajosa o que o pai dela tinha de covardia, correu para o lago do Boqueirão. Mário deixou que fosse. Deu-se conta do perigo. Correu atrás de Alice, a qual chorava de ódio rumo ao Boqueirão. Foi tudo ao mesmo tempo: Mário viu quando Alice desapareceu sumidouro a dentro, o Paiva chegava no seu manga larga, e o Pai João a tudo assistia atrás da jabitucabeira.
Mário não ia fazer nada. Lembrava-se de seu pai. Sentiu um misto de triunfo e vingança. Subitamente ouviu-se uma voz cavernosa:
--Perdoa! Perdoa!
Mário pulou n'água. Alice foi salva. Em recompensa Paiva pagou pelos estudos de Mário. Quem sabe o jovem retornaria mais sociável, um marido para sua Alice?
Passaram-se os anos e volta Mário. Bem vestido, um janota, polido mas frio. Distante da Alice sua companheira de infância, sempre grata por sua vida. Mário não disfarça seu desprezo pelo Paiva. Um dia têm uma conversa de homem para homem. Mário confessa o porquê de seus sentimentos pelo Paiva. Aponta para os dedos tortos da mão direita de Paiva.
--Você selou a sorte do meu pai. Ele não ia se suicidar. Ele errou o caminho do Boqueirão. Você viu. Meu pai conseguiu se erguer de dentro dágua. Ele se aprumou até. Você o empurrou com essa mão direita, em vez de socorrê-lo você o desgarrou de seus dedos. Por isso tua mão é deformada. Salvação para você só a morte. Ouvi tudo isso naquela noite mesmo.
Paiva se desesperou. Saiu ao léu pela fazenda. Os serviçais começaram a procurar pelo patrão. Ao amanhecer viram Mário com o patrão nos braços. Não estava morto, apenas desfalecido. Foi o remorso que o matou um pouco depois de passar a fazenda de volta para Mário e obter deste a promessa de cuidar bem de Alice.
--Vô, e a voz?
--Você disse que não ia interromper. Era o Pai João, assim como foi ele quem inventou o suicídio do pai do Mário, para limpar a barra.
--Vô , dava filme, essa história, hein?
--Olha, meu filhinho, deu um livro. É o Tronco do Ipê, de José de Alencar. É mais ou menos isso. Agora é hora do banho e lanche, vai.
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