O dia em que descobri que tinha superpoderes, por Nicolas Rouquette
O dia em que eu descobri que tinha superpoderesÉ essencial contar minha história antes do dia em que descobri que tinha superpoderes.Tentarei ser sucinto ;sei que sou prolixo. Problema de línguas. Quando pequeno, há mais de um século, vivia com meus oito irmãos na fazenda, perto do canavial e dos animais domésticos: galináceos, bovinos, eqüinos… Mamãe ocupada, de olho nas agregadas e no papai, ou fazendo e criando filhos. Nós, como Candide, vivíamos no melhor possível dos mundos: natureza nos cercando e um desfilar sem fim de preceptoras estrangeiras para nos educar. Encantavam-me as ovelhinhas, com suas tetas rosadas, cheias de leite quentinho. Lembravam-me os seios tenros, rosados, amplos das preceptoras, cujos mamilos também gostaria de … Elas me ensinaram sete línguas, os fundamentos da matemática, esta era uma preceptora feia, russa e comunista. Aprendi noções do direito básico; todos nós éramos advogados; condição sine qua non da família.
Fui para o Rio de Janeiro, onde papai mesmo estava indo para ajudar a re-escrever a primeira constituição da República. Fui ver uns conhecidos na diplomacia. Os exames, ferozes mas passei com louvor. A entrevista foi penosa: cinco diplomatas, me crivando de perguntas e me crivando com os olhos pela minha beleza juvenil… Saí da entrevista já com um posto mas totalmente crivado. Tudo pela pátria amada, idolatrada.
Meu posto diplomático era no Alaska. A diplomacia brasileira achava importante fazer o país mais conhecido alhures. Qual a minha surpresa ao chegar e apresentar meu passaporte diplomático! -- Parlez vous français? –
--Bien sur mais je suis brésilien! Portugais, s’il vous plait!--
Não sei que entenderam os gringos. Caí no Canadá, seguindo flechas de direção duma cabana do consulado russo. É, realmente o português soa para muitos como o russo mas minha missão? Andei o mais rápido possível para a cabana. Meu peito se apertava, meu coração disparava. Prestes a desmaiar, cheguei.
Como se soubesse que eu chegaria um velho de algum lugar da futura União Soviética sorria para mim. Sua barba longa era amarelecida pelo tempo, seus dentes meio podres, seus olhos de um chinês, mal se abriam. Falamos em russo um pouco, eu com um monte de -- “ni znáiu”, “da” e “niet.” O sorriso do velho tinha um quê de maleóvolo. Queria mesmo era dar o fora, eu, mas para onde. De repente, do sussurro em russo o velho, Sr. Minski, passou a falar em inglês e a praguejar contra os estado-unidenses, que tinham passado pra trás os russos na compra do
Alaska. Retruquei mansamente, na voz a mais baixa possível, que o governo dos EUA era assim mesmo, citei as terras mexicanas, as terras francesas e até incluí a ilha de Manhattan. Sr. Minski apertou mais os olhos. Mandou que entrássemos.
A cabana tinha mais frestas que saia de havaiana. Deus, ó Deus, onde estás, bem, o Sr. Minski recomeçou a falar, desta vez em português. Será que ele também foi criado com animais domésticos e preceptoras?
--Olhe, José Rodrigo. A cabana é tosca. A Rússia está para entrar em mais uma guerra. Mas tenho um quarto de hóspedes (de novo aquele sorriso indecifrável.) Lá dorme a minha ursa mascote. Sabes que o urso é o símbolo da Rússia, ou não?
--Mas é claro que sei, mas e as garras e os dentes? Não me estás mandando para a morte? Um aliado seu?
--Para a morte, não. Mando, representante de um país amigo,
futuro berço de socialistas e comunistas que farão guerra aos EUA, e merda no teu país, mando-te para os braços
inesquecíveis de Sachuska. Vá em paz. Tranco a porta por
precaução e para que tenhas mais calor. Até amanhã, José.
Entrei no quarto, acre, mas politesse oblige, não se fala mal do anfitrião. A gigantesca ursa me olhava com olhos redondos, reluzentes, no lusco-fusco do entardecer e se deitou, grunhindo suavemente. Ah, as ovelhinhas. Pertinho da Sachuska eu, o mais perto possível, abraçados. O vento ululava nos céus gelados. Adormeci. De madrugada sonhei com as ovelhinhas e até senti que mamava de suas tetas. Fui mamando, mamando, mamando … Um jato quente me caiu pela goela a dentro. Acordei com aquele gostinho, que não era do leite das ovelhinhas. Ummm. Ah-ha! Sacha é igual a Alexandre. Paguei mico e nem ganhei nada do Itamaraty.
Enraivecido, saí da cabana. À porta, ele. Antes de uns impropérios ditos contra minha educação, ele me desejou boa sorte para todo o resto da minha vida.
Liguei o foda-se pedal; mau humor; fui andando mas sem sentir mais o frio. Olhei para cima; o céu se tingia de várias cores. Havia chegado no Pólo Norte! Aurora Boreal! Olhei para trás, pela primeira vez, desde as palavras do Sr. Minski – Boa sorte para todo o resto da minha vida -- e consegui ver os Grandes Lagos! Pesquei um peixe nas águas glaciais com uma das mãos e
fritei o peixe ao calor da outra. Superpoderes. Sachuska?
Tantos grandes feitos, minha humildade me impede de citá-los. Desde da noite com Sachuska vivo sempre com a mesma idade, 24 anos. Gosto de ensinar sem ser chamado de “professor.” Gosto de línguas. Guardo em segredo meus superpoderes. Tenho saudades das pessoas que se foram mas me adapto bem aos tempos do século XXI. Este poder de adaptação deve ser o maior superpoder que recebi. Irado!
Este conto é dedicado a José Rodrigues Leite e Oiticica, filólogo, poeta parnasiano, professor, anarquista teórico, catedrático do Pedro II, meu tio-avô Cajuza.
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Gostei do seu conto fantástico, Tina. Ando meio sumido nos comentários, mas é falta de tempo mesmo. Restringiram a internet aqui no trabalho. Mas continuo lendo o Universo!
Posted by: Cláudio Vianna | 12-02-2007 at 09:10
Saudações Tina!
He he! Dormir com uma ursa pelo bem da Pátria?!?! Essa é mole...
Beleza de conto, bela homenagem...
Abraços
Posted by: Defensor | 12-02-2007 at 09:22
olá, Tina!
rs...se esivesse lendo ´´Alexandre e outros heróis`´ seria a mesma coisa...muito bom...esse Sr. Minski me levou a imagem daquele chinês que treina a loira do Kill Bill...rs
um beijo
Posted by: Sergio | 13-02-2007 at 01:20
É uma repostagem? Acho que já o li aqui (ou acolá no outro UA, eu acho). Mas sendo ou não, li todo sempre me admirando de como vc escreve. Uns recebem superpoderes de aranha, outros de leitinho de urso. Que fazer? rsrsrsrs... beijos!
Posted by: Eudes, O Honorato | 13-02-2007 at 04:07
Tina, entre em contato com a gente tamos morrendo de saudades.
César e Família
Posted by: César Ribeiro | 13-02-2007 at 07:09
Simplesmente lindo e doce esse texto, Tina!
Adorei!
Posted by: Lívia | 13-02-2007 at 11:00
Hey, wonder woman.
Descobri mais um bom blog hospedado no attu.typepad: Eduardo Carvalho, conhece? Bom mesmo.
Bon jour, femme fatale.
Posted by: Ed | 14-02-2007 at 04:09